Desde que o Ministério da Educação (MEC), comandado por Abraham Weintraub, divulgou que o Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), principal porta de ingresso para as universidades públicas, passará a ser realizado pelo computador nos próximos anos, muitas dúvidas e poucas respostas pairam entre a sociedade e o governo federal.
A medida, publicada no início do mês de julho, promete que, já em 2020, 50 mil estudantes de 15 capitais brasileiras realizarão a prova de forma digital. Em 2026, todos prestarão o ENEM neste modelo e a prova em papel será deixada para trás. No entanto, a mudança parece ignorar a ampla falta de acesso à tecnologia vivida pelas escolas públicas brasileiras.
Na capital do Piauí, Teresina, os professores do Instituto Federal têm conversado nos corredores sobre como preparar os mais de quatro mil alunos de ensino médio para o novo modelo da prova. A instituição, criada em 2008, é um dos poucos aparelhos públicos do estado que conta com acesso à tecnologia, ainda que muito falte para aprimorar.
O professor de biologia e chefe do departamento de formação de professores do campus Teresina Central, Ivanaldo Ribeiro de Moura, durante seis anos dividiu sua rotina vendo as diferenças entre o campo e a cidade piauenses.
“Eu era professor na capital, de escolas particulares, e do estado na zona rural no período noturno. Percebia que lá precisava evoluir muito no aspecto tecnológico de acesso dos alunos a computadores e ao uso das máquinas modernas”, relata.
Ele se diz preocupado com as desvantagens que esse modelo de prova pode acarretar para os estudantes do meio rural caso o cenário desigual não mude nos próximos anos. “Imagine a população que vive na zona rural, não tem muito acesso ás máquinas, e tanto faz se é um público mais jovem e mais adulto, terá dificuldade de realizar essa prova diante de uma tela de computador. Possivelmente, ele vai ter dificuldades e vai sair em desvantagem ao aluno que vive na zona urbana e estuda em escolas particulares bem estruturadas.”
Os números justificam a preocupação do educador. Segundo levantamento divulgado pelo Comitê Gestor da Internet (CGI), em 2018, 43% das escolas rurais do país não possuíam sequer um computador com acesso à internet para uso dos alunos.
A realidade preocupa ainda mais os professores quando acompanhada da informação divulgada pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep) de que não serão comprados novos equipamentos para a realização do Enem digital.
Quem é que ganha?
Outro grupo afetado por essa realidade são os alunos maiores de 18 anos do Ensino de Jovens e Adultos (EJA), pessoas que não completaram o Ensino Médio e agora estudam para conseguir o diploma que os permite concorrer a uma vaga no ensino superior.
Anelise da Silva é professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e acompanha a EJA. Segundo ela, o Enem digital também ignora a geografia do país e a realidade desses estudantes.
“O que a gente vê o tempo todo é que você chaga no lugar e não consegue acessar [a internet] ou porque o equipamento existe mas está estragado, ou porque tem uma parte do equipamento e não tem a outra ou porque, pasme: você tem as duas partes do equipamento, mas não tem luz elétrica. Isso é algo que acontece e não é nos rincões, mas também na região metropolitana de Belo Horizonte”, descreve Silva.
A professora avalia que é preciso fomentar o uso de equipamentos digitais, mas com responsabilidade. No caso da nova medida e das poucas explicações dadas pelo governo, os estudantes da Educação de Jovens e Adultos seriam atingidos negativamente.
“Como é que os idosos, as pessoas em situação de rua, os caminhoneiros, que estão no trabalho o tempo todo, as pessoas de ocupações urbanas e rurais, os moradores do norte de Minas, que andam quilômetros depois de um dia inteiro de trabalho para chegar na escola da cidade, porque a que tinha no campo foi fechada; como terão condições de acessar o Enem digital?”, questiona. “Fico pensando que quando o governo federal pensou a proposta, ele não pensou em para quem ofertar, mas talvez em quem lucra com ela”, completa Silva.
A reportagem contatou o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), que respondeu que não haverá compra de equipamentos para o Enem digital. O instituto afirma que irá “contratar uma empresa aplicadora da prova, que atuará nas unidades de ensino ou com a locação de lugares que tenham infraestrutura.” Desde a sua criação, em 1998, a prova do ENEM tem sido aplicada em papel.