Fonte: Saiba Mais
Vanessa Macambira dos Santos, de 41 anos, é psicóloga. Ela divide as despesas de casa, a conta do Netflix e o peso da violência contra a população LGBT com Glícia Brandão, de 26, também psicóloga. Juntas, o casal tem um filho, Luiz Felipe, de nove anos, também vítima de violações. Em janeiro, Vanessa teve o braço esquerdo quebrado dentro do condomínio onde mora, no bairro Planalto, depois de defender o filho de agressões verbais e físicas vindas de um adolescente e seu pai, vizinhos da família. O adolescente agressor chegou a dizer que toda “sapatão” deveria morrer. As palavras também foram endossadas depois, em uma conversa com os pais do menor, com a frase: “sapatão era pra se fuder mesmo.”
“(o adolescente) desferiu vários chutes contra mim, que já estava caída. Um dos chutes atingiu meu braço esquerdo e senti que havia fraturado na hora. Glícia tentou afastar o agressor de mim, pois ele ainda continuava me chutando já com o braço quebrado, e ele desferiu socos no rosto de Glícia que teve os óculos quebrados. Glícia começou a sangrar bastante. Após a quebra do meu braço, o agressor deu um soco em Glícia, o porteiro de plantão Wellington empurrou Glícia, dizendo “Deixa isso para lá”. O adolescente continuava nos agredindo com palavrões e nos incitando a brigar. Neste momento, havia vários homens próximos, mas ninguém interviu”, disse, em trecho do relato.
Segundo Vanessa, a síndica do condomínio não deu informações sobre os moradores do prédio e nem ajudou no caso. Cinco meses depois de prestarem queixa na delegacia do bairro, na delegacia especializada e irem ao ITEP, nada aconteceu à família agressora. Para piorar, os casos de agressões verbais são constantes no cotidiano familiar e chegam também ao garoto de nove anos.
“Nós não nos sentimos seguras. Acreditamos que após esse novo governo as pessoas preconceituosas têm mostrado suas verdadeiras opiniões. É como se agora fosse permitido. Ainda estou me recuperando física e emocionalmente da agressão sofrida, ainda apresento alguns sintomas de estresse pós-traumático”, conta Vanessa.
O caso de Vanessa, Glícia e o pequeno Luiz Felipe não é isolado. Um mapeamento inédito realizado em 2018 mostra o cenário de violência moral, física e de exclusão sobre a população de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (LGBT) no Rio Grande do Norte.
Os dados foram reunidos pela presidente da Atransparência-RN Rebecka de França para obtenção do título de licenciatura em Geografia pelo Instituto Federal do Rio Grande do Norte, num cenário estadual em que nenhum tipo de diagnóstico se atenta aos crimes sofridos por essa população. Dos 167 municípios do RN, 30 apresentaram pelo menos um caso de violência.
Mais da metade dos LGBTs entrevistados disse ter idade entre 17 e 22 anos e quase 45% se identifica com o gênero masculino. Do total, 85% das pessoas disseram ter se descoberto LGBT entre a idade de 5 a 20 anos, 30,89% deles, como gays. Menos da metade dos entrevistados possuem uma profissão ou estudam. Desses, a maioria é estudante (91). Os demais se identificaram como professores (66), estagiários (25), cabelereiras (17), empresários (14), vendedores (13), assistentes sociais (9), jornalistas (9), prostituição (17), atores ou atrizes (8), auxiliar administrativo (8), bolsistas (8) e autônomos (7).
Em relação ao uso do nome social, somente 10,4% dos respondentes disseram fazer uso, embora exista Lei que viabilize o uso dessa política. Segundo Rebecka, o baixo número pode se justificar por causa das várias instituições e empregados de empresas públicas, privadas e estatais que se negam a dar esse direito.
Os dados foram obtidos por meio de formulários, físicos e on-line, e houve respondentes de 33 municípios do RN, entre eles Natal, Parnamirim, Caicó, Mossoró, Pau dos Ferros, Santa Cruz, Currais Novos, São Gonçalo do Amarante e Macaíba. Entre os municípios que apresentaram casos de violações dos direitos LGBT, Natal é a cidade onde se tem o maior número de violência, sendo 403 casos, o que representa mais de uma vítima por dia. Além disso, todas as Mesorregiões do RN – Leste, Agreste, Central e Oeste Potiguar, foram constatados casos de LGBTfobia.
Para o resultado final, 1294 pessoas foram consideradas nas análises.
Cerca de 63% dos entrevistados, em sua maioria católicos, gays e que ganham até um salário mínimo, disseram já ter sofrido algum tipo de violência em razão da orientação sexual. Segundo as vítimas, a maior parte das violações aconteceram na rua, na escola ou na própria casa, ou seja, ambientes obrigatórios de convivência social, sendo as violências psicológica, verbal e física as de maior incidência.
Embora o IBGE, e o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) não tenham executado nenhum estudo ou mapeamento no Estado, um recorte da pesquisa do IBTE (2017), conhecido como “A Carne mais barata do mercado de 2016”, aponta o Rio Grande do Norte como um dos estados que mais responderam às questões do Censo demográfico da População Trans, aplicado pela Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil. Pelo menos 125 questionários foram respondidos. Além do RN, apenas SP, RJ, MG, PE, PR e RS responderam a mais de cem.
Segundo dados de 2013, vinculados ao número de telefone dos Direitos Humanos da Presidência da República, o DISQUE 100, o Rio Grande do Norte é o terceiro estado mais violento para pessoas LGBTs no Brasil e o primeiro do Nordeste. O Estado potiguar só fica atrás de Roraima e do Mato Grosso.
Mídia boicota violência
Rebecka explica que os índices de violências transfóbicas não são contabilizados porque muitas mídias, sejam televisivas, de rádio ou internet, ainda não acreditam que esse tipo de violência ocorra:
“Por outro lado, o percentual de suicídio dessa população é gigantesco por não aguentarem vivenciar o pragmatismo dessas violações em seus corpos e suas vidas”, destaca.
Apesar de movimentos pela causa se organizarem entre si desde a década de 80, somente há pouco tempo a estudante considera que os gritos de resistência tenham sido escutados de forma efetiva, com a criação do “Comitê de Combate a LGBTfobia do Rio Grande do Norte”, publicada no Diário Oficial do Estado. No âmbito nacional, a recente retirada da Transexualidade do rol de doenças também somou ao campo inclusivo, já que anteriormente homens e mulheres trans, além de travestis, eram tratados como doentes mentais, e submetidos a auxílios médicos e tratamentos psicológicos e psiquiátricos para obterem laudos e conseguirem realizar cirúrgias.
Nos dez primeiros meses de 2018, 123 mortes de pessoas trans foram contabilizadas pela Rede Nacional de Pessoas Trans, primeira entidade nacional a representar a população e traduzir o genocídio trans do Brasil. Comparando os três primeiros meses dos últimos três anos, o número cresceu. No primeiro trimestre de 2016, 40 mortes foram registradas. Um ano depois, 38 pessoas trans morreram no primeiro trimestre. Já em 2018, o número de mortes aumentou para 46.
“É um grito de socorro, de ajuda, pro IBGE ouvir e a população saber que existe esse tipo de violência. A violência não está acabando, o Brasil ainda é o que mais mata a população LGBT. A pesquisa confirma esses dados, mostram que não são inventados e eu, inclusive, não tô isenta da violência”, desabafa.
O objetivo é que o estudo seja entregue em mãos ao IBGE e, a partir disso, mobilizar o Instituto a promover pesquisas que contribuam para o mapeamento dessa população.
Vereadores negaram direitos sociais à travestis e transexuais
Os vereadores de Natal tiveram oportunidade de corrigir a desigualdade no tratamento dado à sociedade aos travestis e transexuais da capital potiguar, mas a maioria negou direitos sociais ao segmento. Em 8 de maio, por 10 votos a 9, a maioria dos parlamentares derrubou o projeto TransCidadania Karla Monique, de autoria da ex-vereadora Natália Bonavides )(PT) e encampado pela vereadora Divaneide Basílio (PT), que propunha acesso à qualificação e mercado de trabalho para pessoas transexuais e travestis, através de programas de qualificação e capacitação, além de humanização do atendimento prestado às pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Numa sessão que revelou o preconceito de vários vereadores da Casa, venceu a intolerância. Alguns nem escondiam a discriminação e usavam o deboche, como o Aroldo Alves (PSDB):
“Tem gente baitola no meu gabinete. Eu beijo, abraço e não tem problema nenhum. Gosto de todo mundo”, disse, sem demonstrar constrangimento.
Ele não foi o único. Outros vereadores também usaram o fato de empregarem em seus gabinetes homossexuais para se dizerem “próximos” do segmento.
Um dado que justifica o projeto é a média de vida de uma pessoa trans no Brasil, geralmente 35 anos de idade.
A proposta é inspirada em lei semelhante aprovada em São Paulo, na gestão do ex-prefeito Fernando Haddad (PT).
A vereadora Divaneide Basílio afirmou que vai reapresentar a proposta
Ministério dos Direitos Humanos foi extinto pelo governo Bolsonaro
O Ministério dos Direitos Humanos, hoje extinto, contabilizava as violações de direitos. Embora, na pesquisa, mais de 80% dos entrevistados não terem conhecimento do Disk 100 para realizar denúncias, o ministério registrou 6 mortes e cerca de 48 denúncias no Rio Grande do Norte, através do telefone.
Só no ano passado, a Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos recebeu 1.876 denúncias de violações de direitos de pessoas LGBTs.
Coordenadoria de Direitos Humanos de Mulheres e Minorias
No Rio Grande do Norte, também foi criado pela CODHMM – Coordenadoria de Direitos Humanos de Mulheres e Minorias, um canal de denúncia para as violências ocorridas no RN, já que não existe delegacia especializada em crimes de LGBTfobia no Estado. O Disque Defesa Homossexual, cujo telefone é 0800-281-2336, atende 24 horas por dia no RN. A CODHMM, que fica em Natal, oferece apoio e acompanhamento até uma delegacia. O órgão fica na Avenida Deodoro da Fonseca, 249, no bairro Petrópolis. Os telefones institucionais são: (84) 3232-2835 e (84) 3232-2836.
Principais ações do movimento LGBT nos últimos dez anos, segundo a ativista
2009
+ Criação do Fórum LGBT Potiguar, com sede na Cidade Alta em Natal-RN.
+ Publicada a lei nº. 5.992, de 28 de outubro de 2009 sobre o uso do nome social em Natal.
+ Lei nº 5974, de 21 de setembro de 2009 instituiu o dia municipal da visibilidade lésbica, a ser comemorado anualmente no dia 29 de agosto.
2010
+ Cria-se na UFRN, o primeiro grupo que debate as questões de Gênero, Orientação Sexual e Diversidade, o Núcleo Interdisciplinar na academia Potiguar – Tirésias. 2011 Acontece em Natal o I Encontro Estadual de Travestis e Transexuais do RN.
+ Publicado o decreto nº 22.331, de 12 de agosto de 2011, sobre a utilização do nome social no Rio Grande do Norte.
2012
+ Criação da ATRANSPARÊNCIA-RN – Associação de Travestis e Transexuais na Ação pela Coerência no Rio Grande do Norte.
2013
+ Criação da ATREVA-SE – Associação das Travestis Encontrando a Atuação e Valorização na Saúde Santa-cruzense.
+ Natal sedia o primeiro encontro destinado a juventude Trans do Brasil o ENJUT – Encontro Nacional de Juventude Trans.
+ Leilane Assunção torna-se a primeira Mulher trans a concluir seu pós-doutorado.
+ Emilly Mel é a primeira mulher trans a ser aceita em um dormitório feminino no país.
2014
+ Primeira Reunião de Homens Trans no Rio Grande do Norte na UFRN e criação do IBRAT-RN (Instituto Brasileiro de Transmasculinidades)
2015
+ Mossoró sedia a I Semana LGBT do Rio Grande do Norte promovida pela UFERSA e Movimentos sociais da cidade.
2016
+ Pela primeira vez, cidades do Rio Grande do Norte organizam Conferências Municiais de Direitos Humanos e Políticas Públicas para pessoas LGBTs, para anteceder a III Conferência Nacional LGBT do Brasil. Cidades como Mossoró, Assú, Caicó e Santa Cruz, além de Natal, conseguem realizar sua I Conferência Municipal LGBT, Monte Alegre e Caiçara do Norte publicam a convocação no diário oficial de seus municípios, mas não conseguem realizar.
+ Realização da III Conferência Estadual de Direitos Humanos e Políticas Públicas LGBTs do Rio Grande do Norte.
2017
+ Criação do grupo “ATREVIDOS” núcleo de homens trans da ATREVIDA.
+ Publicação no diário oficial do estado do Rio Grande do Norte sobre a criação do Comitê Estadual de combate a LGBTfobia.
2017
+ DECRETO Nº 26.598, DE 26 DE JANEIRO DE 2017. Cria o Comitê Estadual de Combate à LGBTfobia e dá outras providências.
2018
+ PROVIMENTO nº. 175, de 28 de maio de 2018. Dispõe sobre a averbação da alteração de prenome e sexo diretamente no Registro Civil das Pessoas Naturais, nas hipóteses previstas no julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.275/DF – do Supremo Tribunal Federal.
Representatividade LGBT
Grupo Afirmativo de Mulheres Independentes (GAMI), Associação de Homossexuais de Assú (AHVA), Coletivo Dêbandeira (Mossoró), Associação das Travestis e Transexuais do RN (Atrevida), Associação de Travestis e Transexuais Encontrando a Valorização e Atuação na Sociedade (Atreva-se), Associação Transmasculinidade do RN (Atrevidos), Associação de Travestis e Transexuais Potiguares na Ação pela Coerência no Rio Grande do Norte – Atransparência/RN e o núcleo de Homens Trans da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Redetrans).
Pioneirismo político LGBT no RN
No campo político, o Rio Grande do Norte teve sua primeira candidata a um cargo público em 2012, onde a partir da coragem dela sair candidata despertou em mais cinco outras jovens de diferentes localidades do estado: Caicó (Dávilla Medeiros), Santa Cruz (Lara Biank), Parazinho (Ana Paula – Berg), Bom Jesus (Amanda) e Carnaúba dos Dantas (Thabata Pimenta).
Rebecka de França
Graduada em Licenciatura Plena em Geografia – IFRN (Natal Central), especialista em Geografia do Semiárido e Educação Ambiental – IFRN (João Câmara-RN), aluna especial do Mestrado em Geografia Profissional da UFRN (GEOPROF), representante da Rede Nacional de Pessoas Trans (Rede Trans) no Rio Grande do Norte, membro do Comitê LGBT do Rio Grande do Norte e Coordenadora Geral da ATRANSPARENCIA-RN.