O aumento das mortes decorrentes de intervenção policial segue dinâmicas distintas em comparação com os assassinatos totais. Dados de secretarias de Segurança Pública de 14 estados e do Distrito Federal mostram que o avanço dos chamados autos de resistência nem sempre é acompanhado por quedas no número de mortes violentas — estatística que inclui homicídios dolosos, latrocínios e lesão corporal seguida de morte.
O discurso de que o aumento da repressão policial letal gera necessariamente a queda da criminalidade vem sendo defendido mais abertamente por políticos desde a eleição do ano passado. De 15 unidades da federação analisadas pelo GLOBO, em nove houve crescimento dos casos na comparação entre janeiro e abril de 2018 e de 2019.
Os números mostram, contudo, que em seis desses estados os autos de resistência caíram, assim como os homicídios (ou seja, não houve relação de causa e consequência). No Piauí, mais um exemplo, só que com números de sinais trocados. No único estado analisado em que dados de homicídios subiram (6%) em 2019, as mortes decorrentes de intervenção policial também avançaram: foram 32 entre janeiro e julho deste ano, 23% a mais do que em 2018.
Em oito, por outro lado, a queda dos assassinatos foi acompanhada por um aumento da repressão policial. Num deles, São Paulo, estado que registrou a menor taxa de homicídios do país em 2018, as mortes causadas por policiais têm aumentado nos últimos quatro anos. Pesquisadores, porém, evitam supor uma relação de causa e efeito entre as duas dinâmicas.
Para Sofia Reinach, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as estatísticas da capital paulista mostram que a mancha de assassinatos se relaciona mais a aspectos socioeconômicos do que à repressão policial. Em pesquisa desenvolvida junto ao Departamento de Estudos e Planejamento Urbano do MIT, nos EUA, Sofia cruzou dados georreferenciados de mortes violentas e autos de resistência nos bairros paulistanos. A maior incidência de letalidade policial ocorreu nas zonas leste e norte, enquanto os homicídios se concentraram na zona sul.
— O discurso oficial é de que a intervenção policial tem correlação com as mortes violentas. Elas deveriam, então, se contrapor. Mas a pesquisa indica que elas se concentram em lugares diferentes.
Stephanie Morin, do Instituto Sou da Paz, aponta que o uso de força letal por parte da polícia é mais comum para evitar crimes contra o patrimônio, como roubos de veículos, que nem sempre resultam em homicídios. Em abril, o governador João Doria (PSDB) anunciou homenagens a policiais que mataram 11 assaltantes após roubos a agências bancárias em Guararema, e parabenizou os agentes por mandarem criminosos “para o cemitério”.
— A polícia é uma instituição altamente hierarquizada. Quando existe um recado claro, seja do governador ou do comandante, de que os policiais têm que matar mais, isso abre um precedente preocupante — diz Morin.
Crescimento no Rio
Desde 2009, as estatísticas de autos de resistência e homicídios costumam aumentar e diminuir juntas, atingindo seus pontos mais baixos entre 2013 e 2014, antes de entrarem em nova ascensão até o último ano. No Ceará, estado que apresentou a maior redução de mortes violentas do país em 2019, os autos de resistência também estão em baixa. Os assassinatos caíram 54% no primeiro semestre, e a letalidade policial diminuiu quase 30%.
No Rio, os dados deste ano mostram queda de assassinatos, ao passo que aumentaram as mortes por intervenção policial. Na última semana, o Instituto de Segurança Pública (ISP) do governo estadual informou que, nos primeiros sete meses de 2019, houve 1.075 autos de resistência, o maior número da série histórica.
O antropólogo e ex-subcomandante do Bope Paulo Storani avalia que a ação da polícia não é a única maneira de se chegar às raízes do problema da segurança pública, mas acaba sendo necessária para impedir a expansão de facções criminosas.
— Os criminosos não depõem suas armas quando a polícia deixa de agir. Pelo contrário: eles sentem-se estimulados a se reestruturar e invadir territórios, disputando com outras facções e também com a milícia. A diferença agora é que a polícia está agindo — aponta Storani.