Há dois meses trabalhando diretamente no combate à pandemia do novo coronavírus em Mossoró, no Oeste do Rio Grande do Norte, a enfermeira Jéssica Saraiva se divide em uma jornada quádrupla. Isso porque a profissional da saúde precisa conciliar os expedientes em dois hospitais da cidade com o trabalho social para arrecadar doações e a rotina como mãe da Maria Eduarda, de 10 anos.
Foi para Maria Eduarda que Jéssica publicou uma carta explicando os “pecados de uma mãe enfermeira”. A profissional precisou se isolar dentro do apartamento em que mora juntamente com a filha e o marido para evitar contaminar a família. “Tive que te explicar o porquê de recusar o seu abraço. Você chorou, chorou muito, e eu não pude te consolar de perto. Como aquilo doeu”, escreveu Jéssica para a filha.
Formada há 10 anos, a enfermeira está duplamente na linha de frente de combate à Covid-19. Ela atua nas esferas pública e privada, no Hospital Regional Tarcísio Maia do Governo do Estado e no Hospital Wilson Rosado, ambos em Mossoró. Nas poucas horas vagas, a mulher de 32 anos se dedica ainda a um projeto, que arrecada alimentos e materiais de higiene para pessoas em vulnerabilidade social afetadas pela pandemia.
Na carta que escreveu para Maria Eduarda, Jéssica conta que esteve ausente em alguns momentos importantes no desenvolvimento da filha por causa dos plantões. “Não fui eu quem te ouviu dizer a primeira palavra, não te levei ao seu primeiro corte de cabelo, não fui eu quem te ajudou a tirar o seu primeiro dentinho ‘mole’. Deve ser bem difícil para você ter uma mãe enfermeira”, diz.
A enfermeira encerra a carta desejando que “um dia” a filha entenda a ausência forçada da mãe. Segundo Jéssica Saraiva, a resposta da menina de 10 anos veio bem antes do esperado. “No começo foi bem difícil, mas depois da carta ela veio me dizer que entendia tudo e isso me encheu de orgulho. Foi muito gratificante. Agora ela compreende e inclusive está bem engajada na prevenção à doença”, afirma.
Jéssica apresentou sintomas da Covid-19 e foi afastada das funções por sete dias, até receber o resultado negativo e retornar às atividades nos dois hospitais. No entanto, ela segue tomando todos os cuidados para não levar o vírus para dentro de casa. “Antes de entrar no apartamento, eu coloco a roupa em uma caixa, tomo banho e limpo o banheiro com álcool e hipoclorito de sódio”.
E completa: “Hoje as coisas mudaram, chegamos a um cenário onde os profissionais de saúde não têm mais medo de se infectar, mas sim de levar essa doença para dentro de casa. Faço tudo isso pelo amor que tenho pela minha família e pela minha profissão. É por amor que me levanto todos os dias e renovo minhas forças para lutar contra essa ameaça invisível”.
“Me vi na tão falada linha de frente”
Além de manter o distanciamento social com a filha, até mesmo dentro da mesma casa, a especialista em urgência e emergência também se afastou da mãe, que pertence ao grupo de risco do novo coronavírus. “Precisamos dessa responsabilidade coletiva porque essa doença é imprevisível”.
Trabalhando nos corredores de duas unidades hospitalares da segunda cidade potiguar mais afetada pela Covid-19, Jéssica Saraiva viu de perto a evolução da doença desde os primeiros casos. São relatos de apreensão, medo, angústia e insegurança da mulher que também perdeu colegas de profissão para a doença, como o técnico de enfermagem Luiz Alves de Brito, de 48 anos.
“O apoio da população nos chamando de heróis é muito importante. Somos muito gratos por isso, mas nem sempre temos força para ser heroína porque adoecemos, sentimos medo, angústia e sofremos com a perda de pacientes. Quando se recuperam é sempre uma alegria muito grande, mas também é uma tristeza sem fim quando perdem a vida. Não tem jeito, a gente se envolve. Essa luta não é só minha, as pessoas precisam ajudar. Todo mundo pode fazer sua parte, nem que seja ficando em casa”, diz.
Jéssica lembra da estudante Antônia Gizele Aquino, de apenas 18 anos, que morreu vítima da Covid-19 no Hospital Tarcísio Maia. “Tem paciente com comorbidade que felizmente sobrevive e paciente jovem que acaba morrendo, como foi o caso da Gizele. Nenhuma mãe merece uma dor dessas. É ‘antinatural’ enterrar um filho, quebra o ciclo comum da vida. É uma doença muito perigosa, todo dia aprendemos algo novo sobre ela.”, acrescenta.
De acordo com o último boletim divulgado pela Secretaria de Estado de Saúde Pública (Sesap), na quarta-feira (20), o Rio Grande do Norte tem 3.796 casos confirmados e 170 mortes por Covid-19. Em apenas 24 horas foram 313 novos casos e 10 óbitos. Mossoró concentra 17% das confirmações notificadas, além de 33 mortes causadas pelo novo coronavírus.