Decreto das armas de Bolsonaro tem ilegalidades, aponta análise técnica da Câmara

Outra análise, feita por técnicos do Senado, diz que a norma assinada pelo presidente da República para facilitar porte de armas 'extrapolou o poder regulamentar'.

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Rodrigo Maia conduz sessão na Câmara (Foto: Luis Macedo/Câmara dos Deputados)

A área técnica da Câmara dos Deputados elaborou um parecer para enviar ao presidente da Casa, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no qual diz que há ilegalidades no decreto de armas assinado por Jair Bolsonaro. Uma outra análise, feita por técnicos do Senado, diz que a norma “extrapolou o poder regulamentar”.

O decreto de Bolsonaro facilita o porte de arma para um conjunto de profissões, como advogados, caminhoneiros e políticos eleitos – desde o presidente da República até os vereadores. O porte é o direito de transportar a arma na rua.

Além disso, o texto libera a compra de armas que antes eram de uso restrito das forças de segurança, amplia a quantidade de munições que podem ser adquiridas por ano, permite que menor pratique tiro esportivo sem necessidade de aval da Justiça, e abre o mercado para a importação.

A análise da Câmara aponta os seguintes problemas (veja o detalhamento ao final deste texto):

  • O decreto acaba com a exigência de que integrantes de diversa categorias comprovem a “efetiva necessidade” de portar arma, como determina a lei do Estatuto do Desarmamento
  • O decreto não diz quando e onde o porte tem validade, como exige essa mesma lei
  • O decreto dá porte de arma a praça das Forças Armadas, mas a legislação estabelece que quem define as regras sobre esse assunto são as próprias Forças Armadas, e não o presidente da República

Já a análise feita por técnicos do Senado Federal, a pedido dos senadores Fabiano Contarato (ES) e Randolfe Rodrigues (AP), da Rede, se restringe à questão da efetiva necessidade para o porte de armas. Ao eximir algumas categorias da obrigação de comprová-la, o decreto Bolsonaro “extrapolou o poder regulamentar”, segundo os técnicos.

Assim que o decreto foi editado, na quarta-feira (8), Maia encomendou uma análise aos técnicos da Câmara. Na quinta (9), disse que a avaliação já tinha identificado “algumas inconstitucionalidades” e manifestou intenção de tomar duas iniciativas: dialogar com o governo para demonstrar que houve invasão da competência do Legislativo; e votar projetos que suspendam o decreto.

“Sem dúvida nenhuma, aquilo que for inconstitucional do decreto de armas, ou vamos dialogar com o governo – que é o que queremos, para que ele possa compreender que entrou nas atribuições do Congresso Nacional –, ou vou ter que votar um dos oito ou nove projetos de decreto legislativo [que sustam o decreto do Executivo]”, disse o presidente da Câmara, na quinta-feira.

A Câmara já usou esse expediente para suspender um decreto do governo Bolsonaro. Em fevereiro, os deputados sustaram o decreto do vice-presidente Hamilton Mourão – então presidente em exercício – que permitia a servidores comissionados impor sigilo a informações públicas.

VEJA ÍNTEGRA DA ANÁLISE DA CÂMARA E OS PROBLEMAS ENCONTRADOS

Primeira página da análise da Câmara sobre ilegalidades do decreto de armas assinado pelo presidente Jair Bolsonaro — Foto: Reprodução

Segunda e última página da análise da Câmara sobre ilegalidades do decreto de armas assinado por Bolsonaro — Foto: Reproduçã

Veja os problemas encontrados pela área técnica da Câmara

O que diz o decreto sobre ‘efetiva necessidade’ para obtenção de armas de fogo

O texto assinado por Bolsonaro considera, para algumas categorias, já cumprido o requisito previsto em lei – a demonstração de efetiva necessidade – para obtenção do porte de armas. Leia a seguir:

Art. 20. O porte de arma de fogo, expedido pela Polícia Federal, é pessoal, intransferível, terá validade no território nacional e garantirá o direito de portar consigo qualquer arma de fogo, acessório ou munição do acervo do interessado com registro válido no Sinarm ou no Sigma, conforme o caso, por meio da apresentação do documento de identificação do portador. […]

§ 3º Considera-se cumprido o requisito previsto no inciso I do § 1º do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003, quando o requerente for:

I – instrutor de tiro ou armeiro credenciado pela Polícia Federal;

II – colecionador ou caçador com Certificado de Registro de Arma de Fogo expedido pelo Comando do Exército;

III – agente público, inclusive inativo:

a) da área de segurança pública;

b) da Agência Brasileira de Inteligência;

c) da administração penitenciária;

d) do sistema socioeducativo, desde que lotado nas unidades de internação de que trata o inciso VI do caput do art. 112 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente; e

e) que exerça atividade com poder de polícia administrativa ou de correição em caráter permanente;

f) dos órgãos policiais das assembleias legislativas dos Estados e da Câmara Legislativa do Distrito Federal;

g) detentor de mandato eletivo nos Poderes Executivo e Legislativo da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, quando no exercício do mandato;

h) que exerça a profissão de advogado; e

i) que exerça a profissão de oficial de justiça;”

O que diz a área técnica da Câmara sobre esse ponto

A análise da Câmara diz que o decreto não pode se sobrepor ao que diz a legislação vigente, ou seja, o Estatuto do Desarmamento.

“Ocorre que, por força de dispositivo de lei – o já mencionado art. 10 § 1o, I, da Lei n. 10.826/2003 –, a autorização para o porte da arma de fogo, entre outros requisitos, dependerá obrigatoriamente da demonstração da efetiva necessidade do porte devido ao exercício da atividade profissional de risco ou de ameaça à integridade física do requerente. Nota-se, assim, que a lei não permite que norma infraconstitucional estabeleça presunção absoluta ou relativa de cumprimento desse requisito. A lei é clara no sentido de que deve haver demonstração efetiva da necessidade do porte, devendo cada caso concreto ser analisado pelo órgão competente.”

O que diz o decreto sobre limites para o porte

O texto do governo afirma que o porte de armas é dado a quem cumprir os requisitos legais, sem limitar onde e quando o porte tem validade:

“Art. 20. […]

§ 2° O porte de arma de fogo de uso permitido é deferido às pessoas que cumprirem os requisitos previstos no § 1º do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003.”

O que diz a área técnica da Câmara sobre esse ponto

Segundo análise, o decreto desconsidera o que diz a lei do Estatuto do Desarmamento, que exige que a autorização para o porte seja limitada no tempo e no território. A lei afirma que a autorização para o porte de arma de fogo “poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada”. Ninguém poderia, portanto, ter porte de armas de forma permanente.

A análise da Câmara diz que há ilegalidade nesse ponto do decreto:

“Além disso, o artigo 20, § 2°, do Decreto n. 9.785/2019 preceitua que ‘o porte de armas de uso permitido é deferido às pessoas que cumprirem os requisitos previstos no § 1º do art. 10 da Lei nº 10.826, de 2003’, sendo omisso no que se refere à autorização do porte de forma limitada no tempo e no espaço – o porte de arma de uso permitido a certas pessoas, a despeito de o art. 10, § 1° do Estatuto do Desarmamento exigir expressamente que essa autorização tenha eficácia temporária e territorial limitada. O dispositivo parece ampliar, em sede de Decreto, o rol das pessoas às quais o art. 6º do Estatuto permite o porte de arma. Caso aplicada dessa forma a norma traduziria patente ilegalidade.”

O que diz o decreto sobre o porte para praças das Forças Armadas

O texto assinado pelo presidente Jair Bolsonaro autoriza que praças das Forças Armadas com estabilidade garantida por 10 anos ou mais tempo de serviço tenham direito ao porte de arma assim como os demais militares e integrantes das instituições policiais das esferas federal, estadual e distrital, além das polícias legislativas federais.

“Art. 26. O porte de arma de fogo é garantido aos militares e aos integrantes das instituições policiais, das esferas federal, estadual e distrital, e aos policiais da Câmara dos Deputados e do Senado Federal em razão do desempenho de suas funções institucionais.

§ 1º O porte de arma de fogo é garantido aos praças das Forças Armadas com estabilidade de que trata a alínea “a” do inciso IV do caput do art. 50 da Lei nº 6.880, de 9 de dezembro de 1980 – Estatuto dos Militares.”

O que diz a área técnica da Câmara sobre esse ponto

Para a Câmara, o trecho do decreto viola o Estatuto dos Militares:

“O art. 26, § 1°, do Decreto n. 9.785/2019 autoriza o porte de arma a praças das Forças Armadas detentores de estabilidade, em violação ao art. 55, “r”, da Lei n. 6.880/190, que permite o porte de arma pelas praças com as restrições impostas pela respectiva Força Armada. Ou seja, por determinação legal, é a própria Força Armada que estabelece como será disciplinado o porte de arma das praças, podendo estabelecer requisitos para sua concessão. Não pode, portanto, um Decreto tratar de matéria reservada por lei à autoridade do Poder Executivo diversa do Presidente da República.”

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