Mesmo tomando anticoncepcional, a estudante Angélica Gazola, 33, engravidou três vezes. Foi mãe de duas meninas maravilhosas e, esperando a terceira, decidiu procurar o serviço de saúde para uma orientação sobre planejamento familiar. Queria dar uma vida melhor às filhas e, como a pílula não parecia suficiente para garantir a proteção, a solução seria uma laqueadura.
Angélica assistiu a uma palestra sobre métodos contraceptivos, foi ao cartório com o marido, assinou documentos e definiu que, quando fizesse a cesariana para trazer a última filha ao mundo, passaria também por uma laqueadura. Mas, sem médicos para fazer a cirurgia na rede pública, em 2015, depois do parto (que acabou sendo uma experiência traumatizante), saiu do hospital sem a esterilização.
Alguns meses depois, a estudante foi informada de que o Sistema Único de Saúde (SUS) oferecia uma opção para a laqueadura – sem cortes, sem anestesia, sem dor. Implantando o Sistema Essure, a paciente sairia caminhando do hospital no mesmo dia do procedimento. Algo seguro, 99% efetivo, com poucos efeitos colaterais. Com três filhas para cuidar, uma delas recém-nascida, a estudante marcou um horário no Hospital Materno Infantil (Hmib), uma vez que tinha toda a documentação.
Fabricado pela gigante alemã Bayer e incorporado pelo SUS em 2009, o Essure era uma ideia promissora: duas molinhas de 4 cm feitas de aço inoxidável, fibras de tereftalato de polietileno (PET) e cobertas por uma liga metálica de níquel e titânio; posicionadas uma de cada lado, na passagem que liga as trompas ao útero, elas impediriam o caminho do óvulo até o colo do útero e, assim, evitariam a fecundação. Tudo sem dor e sem complicação.
Não foi bem o que aconteceu com Angélica. Nem com outras 106 mulheres do DF que se autointitulam as Vítimas do Essure. Nos anos seguintes, a vida da estudante desmoronou.
“Não consigo mais cuidar da minha família, desenvolver uma relação pessoal com meu marido. Minha vida se reduz à dor. Ultimamente ando tendo aceleração cardíaca, dormência no corpo, já cheguei a ficar com o lado esquerdo todo paralisado. Não durmo. Minhas filhas me assistem em cima da cama, chorando e gemendo de dor. Eu digo que está tudo bem, para não se assustarem. Eu não consigo ser a mãe que queria ser, não tenho a condição de dar o carinho, o afeto e conforto que elas merecem. Isso me destrói. Eu acordo com dor e durmo com dor. Vou ao médico, dizem que não tenho nada, que é coisa da minha cabeça”, desabafa.
A derrocada
Pouco tempo depois de ter começado a ser implantado em mulheres de vários países do mundo, o Essure passou a ser questionado pela comunidade médica. As pacientes relatavam efeitos adversos, como dor crônica, inchaço na barriga, mudança no fluxo menstrual, migração do dispositivo para outras partes do corpo, reações de sensibilidade ao níquel, dores fortes durante o ato sexual e até gestações indesejadas.
Em fevereiro de 2017, depois de receber relatos de pacientes e acompanhando a polêmica internacional sobre o tema, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) decidiu suspender a importação e a distribuição do dispositivo no Brasil, além de recolher as unidades que não foram implantadas. Na ocasião, o Ministério da Saúde enviou uma nota técnica aos governos dos estados onde o Essure havia sido adotado – Rio de Janeiro, São Paulo, Pará, Tocantins e Distrito Federal –, informando que “as usuárias deste produto devem ser contatadas, informadas sobre o risco e sobre a necessidade de ressecção do Sistema Essure através de cirurgia, que deverá ser agendada, de forma ágil, na rede SUS”.
No Distrito Federal, a estimativa da Secretaria de Saúde é que 2 mil dispositivos foram colocados em pacientes. Destes, apenas dois foram retirados. De acordo com a pasta, apenas seis mulheres procuraram o Hmib reclamando do Essure. Depois de avaliação clínica, julgou-se a necessidade de operar apenas duas delas. O grupo Vítimas do Essure questiona a desorganização e a demora da Secretaria de Saúde em seguir a orientação do órgão federal.
O advogado João Paulo Todde, que representa 62 das mulheres do grupo de Brasília, acusa o Estado de leniência. “O primeiro ato devia ser chamar todas as mulheres que fizeram o procedimento para imediata avaliação física e psicológica e, se for o caso, fazer a retirada. É uma questão de humanidade”, afirma.
Em resposta à reportagem, a Secretaria de Saúde afirma que as pacientes com os sintomas podem buscar o Hmib a qualquer tempo. O hospital da rede pública é o indicado porque os contraceptivos foram instalados lá.
A primeira vitória
A empresária Gizeli de Jesus Silva, 40, foi a primeira vítima brasilense a conseguir uma ordem judicial obrigando o governo a retirar o Essure do seu corpo. No último sábado (12/10/2019), por meio de uma liminar, o juiz Gabriel Moreira Carvalho Coura considerou que a empresária corre risco de vida e o Estado deve realizar a cirurgia para a retirada do dispositivo o mais rápido possível: se não houver vaga na rede pública, o procedimento deve ser feito na rede particular. A reportagem encontrou Gizeli depois da notícia e, visivelmente aliviada, ela esperava com o telefone em mãos a ligação para marcar a data da cirurgia.
Mãe de dois filhos, em 2013 a empresária optou pelo método com a mesma promessa das outras mulheres: algo indolor, rápido. Seis anos depois do procedimento, Gizeli apresenta fluxo menstrual intenso, inflamação nas articulações, fadiga, dor de cabeça, esquecimento e uma dor que começa no quadril, vai descendo pelas pernas e a impossibilita de ficar em pé por muito tempo, andar de bicicleta ou fazer caminhadas. “É muito triste, meus filhos me veem sofrendo o tempo todo”, afirma.
Ela só descobriu que o problema era o Essure quando estava conversando com uma cliente que tinha colocado um DIU e resolveu pesquisar sobre o próprio dispositivo. A primeira notícia que viu foi a proibição da Anvisa. “Fui entrando nos grupos de pacientes, lendo os relatos, e me identifiquei com os sintomas. Era o que eu sentia. Anotei os exames que elas fizeram, então os fiz em clínicas particulares. Descobri que meu útero está com o dobro do tamanho normal, meus ovários estão inchados e há cistos no local, além de muito líquido acumulado no abdômen por causa da inflamação”, explica.
Com os exames em mãos, Gizeli procurou um posto de saúde. Não conseguiu atendimento. A próxima parada foi o Hmib, onde precisou insistir para conseguir ver um médico, que pediu mais um exame. A empresária espera desde abril ser chamada para fazer o teste e não consegue marcar o retorno. “Ele disse que eu deveria ser a oitava que voltava no hospital por causa do Essure, mas insistiu que o problema não era esse”, lembra. Ela decidiu, então, procurar ajuda jurídica. “Quero tirar, nem que signifique tirar meu útero. Preciso da minha saúde de volta.”
Nesta semana, o DF se manifestou contestando o pedido, informando que não seria necessária a retirada de forma emergencial. A defesa foi indeferida pelo juiz de direito André Gomes Alves. O magistrado deu, ainda, prazo de três dias úteis para que o governo agende uma consulta para prescrever os procedimentos pré-operatórios. O prazo acaba na próxima semana.
O advogado Todde considera a decisão uma vitória e pretende entrar com o mesmo processo em nome de todas as outras clientes do escritório que buscam ser “e-livres”, como se consideram as mulheres que conseguiram tirar o Essure. “Queríamos colocar muito claramente ao Estado que não estamos em uma situação simples, não há tempo para aprofundamento de tese e discussão, e não estamos aqui de brincadeira”, diz. Depois disso, o escritório deve começar a correr atrás de indenização para as vítimas.
“Me arrependo de ter colocado”
A motorista Patrícia Carla Mendes, 40, pretende seguir o mesmo roteiro que Gizeli. Depois de três gestações e um parto no mínimo traumático, ela decidiu que não queria mais ter filhos. Conversou com o marido e optou pela laqueadura. Em 2012, Patrícia procurou o serviço de saúde, fez um cadastro e, meses depois, viu na televisão uma reportagem sobre um mutirão, então seguiu para o Hmib.
Lá, assistiu a uma palestra sobre planejamento familiar. Explicaram que, em vez de passar pela cirurgia que bloqueia a passagem entre as trompas e o útero, um novo procedimento “quase indolor e sem internação” estava sendo oferecido. Patrícia optou pelo Essure, mas, meses depois, notou a barriga inchada, começou a sentir muitas dores nas pernas e cansaço extremo. Achou que estava engordando, que trabalhava demais. Depois que uma amiga contou ter visto uma reportagem na televisão falando sobre os problemas do dispositivo, a motorista entendeu que este poderia ser o seu caso.
Nos grupos de vítimas, Patrícia descobriu que muitas mulheres sentiam os mesmos sintomas que ela, e o ponto em comum era a presença do dispositivo no corpo. “Não digo que foi reconfortante, estamos todas sofrendo, mas é bom saber que o que eu sinto não é fruto da minha imaginação. Porém, no geral, é frustrante: a gente só não queria mais ter filhos. A minha sensação é que fomos cobaias de um procedimento que nem o governo sabia direito o que era”, afirma.
A Secretaria de Saúde sustenta que, antes do procedimento, as mulheres receberam informações sobre o método e assinaram um termo de consentimento que apresentava os riscos e benefícios do Essure, além dos possíveis efeitos colaterais. As vítimas refutam, dizendo que o termo afirmava apenas que o procedimento era irreversível e a palestra versava, principalmente, sobre planejamento familiar e funcionamento do dispositivo.
Em nota ao Metrópoles, a Bayer afirma que segue acreditando no perfil positivo de risco/benefício do Essure e que a segurança e a eficácia do dispositivo foram demonstradas por um extenso número de evidências científicas.
“Embora todos os produtos e procedimentos de controle de natalidade tenham riscos, as evidências científicas demonstram que o perfil de segurança de Essure é consistente com os riscos identificados no momento de sua aprovação. Desde 2017, o dispositivo Essure não está sendo importado, distribuído ou comercializado no país por questões estratégicas dos negócios, não tendo qualquer relação com sua segurança e eficácia”, diz o documento.