Milhões de crianças vão passar fome no Brasil neste 12 de outubro

Fonte: BBC Brasil

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As doações de alimentos estão rareando em Caranguejo Tabaiares, comunidade de 5 mil habitantes na periferia de Recife (PE). E, quando chegam, acabam muito antes suprir toda a demanda, que está cada vez maior, de pessoas sem comida o suficiente em casa.

Ali, algumas mães já vinham se queixando de colocar os filhos para dormir com fome meses atrás, sem saber se teriam com o que alimentá-los no dia seguinte. Desde então, dizem líderes comunitárias, a situação se agravou.

“A fome já era uma constante na nossa periferia. Só piorou com essa pandemia”, conta à BBC News Brasil Daniele Lins da Paixão, que integra a organização comunitária Caranguejo Tabaiares Resiste. “Daí as crianças pedem um biscoito e a mãe não consegue dar. E se sente culpada, incapaz. É um sofrimento muito grande.”

A combinação de desemprego alto, crise econômica, assistência social insuficiente e aumento nos preços dos alimentos, em plena pandemia, tem se refletido em um aumento na pobreza e na fome, que afeta ao menos 19 milhões de brasileiros. E é nas famílias com crianças que os efeitos são mais agudos.

E uma vez que as crianças estão em uma fase crucial de seu desenvolvimento, é nelas que a fome pode deixar mais impactos de longo prazo. Às vezes, para a vida toda.

Há ao menos 9,1 milhões de crianças de 0 a 14 anos em situação domiciliar de extrema pobreza (vivendo com renda per capita mensal de no máximo R$ 275), calcula a Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança.

Na prática, isso provavelmente significa que elas estão em situação de insegurança alimentar, porque a família não terá dinheiro o suficiente para garantir todas as refeições.

“É uma situação em que às vezes a família consegue fazer o almoço, mas não o jantar. E não sabe o que vai acontecer naquele mesmo dia”, explica Cíntia da Cunha Otoni, líder da área de saúde da Fundação Abrinq. “Já existia uma situação grande de insegurança alimentar, mas se agravou muito na pandemia devido à queda na renda familiar.”

O cálculo da Abrinq foi feito com base em dados de 2019 do IBGE (da pesquisa Pnad Contínua) e leva em conta inclusive o dinheiro recebido por essas famílias via programas governamentais, como Bolsa Família e Benefício de Prestação Continuada.

Como a pobreza aumentou desde então, esse número de crianças na pobreza extrema e com fome muito provavelmente cresceu neste ano — sobretudo porque o custo dos alimentos tem um peso muito grande no orçamento das famílias mais pobres. Hoje, na média, uma família que ganha um salário mínimo já gasta 55% dessa renda comprando os alimentos básicos suficientes para apenas uma pessoa adulta, aponta o Dieese.

Outros dados reforçam essa percepção.

Enquanto 56% da população adulta brasileira viu sua renda cair desde o início da pandemia, essa porcentagem sobe para 64% no subgrupo de adultos que moram com crianças e adolescentes, segundo pesquisa do Unicef (braço da ONU para a infância) realizada em maio de 2021.

“Embora a gente saiba que as crianças não foram mais afetadas pelo vírus (da covid-19) em si, elas são as mais afetadas pelos impactos secundários que toda essa situação trouxe e pela interrupção de serviços”, disse a representante do Unicef no Brasil, Florence Bauer, durante simpósio realizado no dia 6 de outubro pelo Núcleo da Ciência Pela Infância (NCPI).

Comendo menos e comendo pior

Bauer destacou, também, como piorou a qualidade da comida ingerida: 29% das famílias brasileiras estão comendo mais alimentos industrializados, 22% estão consumindo mais bebidas açucaradas, e 18% estão ingerindo mais fast food, segundo a pesquisa do Unicef.

Esses alimentos são mais baratos e fartamente disponíveis. Mas costumam ser péssimos para a saúde, por não serem nutritivos e conterem excesso de sódio, açúcares e gordura.

Ou seja, além de eles não proverem as crianças com os nutrientes presentes nos alimentos in natura, eles favorecem a obesidade, diabetes e outros problemas de saúde de longo prazo.

Nas casas em situação de insegurança alimentar (ou seja, com alimentos em quantidade insuficiente), o consumo de comida saudável caiu 85% na pandemia, aponta uma pesquisa do grupo Food For Justice lançada em abril.

A carne vermelha, cujo preço subiu mais de 30% em 12 meses, segundo o IBGE, é uma das principais fontes de ferro, um nutriente particularmente importante para as crianças — e a deficiência de ferro (ou anemia) pode causar atrasos no desenvolvimento e deixá-las mais expostas a infecções.

A queda no consumo de carne, por sinal, desperta preocupação por potencialmente agravar uma estatística já considerada “trágica”: a de que uma em cada três crianças brasileiras sofre de anemia.

“Não ter uma alimentação adequada nessa fase do desenvolvimento (na infância) pode deixar impactos na saúde para o resto da vida, pelo risco de desenvolverem problemas mais para frente (na vida adulta)”, agregou Bauer.

Ela lembrou, também, que quase a metade das crianças da rede pública de ensino ficaram sem acesso à merenda escolar durante os meses de escolas fechadas. “E sabemos que, para muitas delas, essa era a principal refeição do dia.”

A situação nutricional das crianças brasileiras já era preocupante. Uma ampla pesquisa nacional, feita entre 2019 e 2020 com 13 mil famílias com crianças de até cinco anos, apontou que quase a metade delas vivia em algum grau de insegurança alimentar.

Isso corresponde a 6 milhões de famílias em todo o Brasil, com maior incidência nas regiões Norte e Nordeste, segundo os cálculos do Estudo Nacional de Alimentação e Nutrição Infantil (Enani), coordenado por Gilberto Kac, professor titular do Instituto de Nutrição da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

“Como a coleta de dados foi realizada antes da pandemia de covid-19, avaliamos que a prevalência de insegurança alimentar pode ser ainda mais elevada”, afirmou Kac, em comunicado.

Leia mais em https://www.bbc.com/portuguese.

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