Juiz aponta violência do Rio para tirar guarda de mãe que mora com filho na favela de Manguinhos

Na sentença, magistrado diz ser mais seguro para a criança, hoje com 8 anos, viver com o pai em Joinville, Santa Catarina

Elenilce Bottari | O Globo

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Rosilaine com seus dois filhos, um de 15 e outro de 8 anos: decisão judicial pode afastá-la do mais novo, que passaria a morar com o pai em Joinville, norte de Santa Catarina Foto: Guito Moreto
Rosilaine com seus dois filhos, um de 15 e outro de 8 anos: decisão judicial pode afastá-la do mais novo, que passaria a morar com o pai em Joinville, norte de Santa Catarina Foto: Guito Moreto

A violência carioca ameaça tirar o filho de oito anos de uma mãe da favela de Manguinhos. Não será pela ação direta dos criminosos, porém, pela decisão de um juiz que considerou que, “nos dias que correm, é mais seguro residir fora do município do Rio de Janeiro”. Foi um dos fundamentos para, no último dia 12 de julho, ele definir, pela segunda vez numa mesma ação, que a guarda da criança deveria ser entregue ao pai, morador atualmente da cidade catarinense de Joinville, a cerca de 900 quilômetros de distância da mãe, Rosilaine, de 41 anos, e também do irmão (filho de outro pai) e de parentes maternos.

Numa primeira sentença, de 1º de fevereiro de 2017 — anulada em segunda instância, em outubro daquele mesmo ano, por cerceamento da defesa e violação ao princípio do contraditório — , o magistrado já tinha argumentado o mesmo. “Reputo muito mais vantajoso para a criança, hoje com seis anos, a morada com o pai do que com a mãe. A cidade do Rio de Janeiro tornou-se uma sementeira de crimes, havendo para todos o risco diuturno de morrer. Em Joinville-SC, este risco estará sensivelmente reduzido para a criança”, tinha escrito o juiz, de uma vara da família da capital, cujo nome não será revelado a pedido da mãe e de sua defesa.

Desde a infância, Rosilaine vive em Manguinhos. A casa de três cômodos em que cria os filhos é própria, para onde se mudou depois de remanejada por obras do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC).

— Aqui, sempre fomos felizes. A casa é simples, mas ele adora a convivência com o irmão, de 15 anos, e estuda na mesma escola privada desde os 3. Os dois são muito unidos, têm aqui seus amigos de infância e toda minha família — conta a mãe, agente de saúde do município, com uma renda familiar de R$ 2 mil.

Rotina de confrontos

A comunidade em que ela e os filhos nasceram e foram criados é conflagrada, vive sob a ameaça dos confrontos entre traficantes e policiais. Na circunscrição em que está inserida, a da 21ª DP (Bonsucesso), o Instituto de Segurança Pública do Rio (ISP) contabiliza 28 homicídios dolosos entre janeiro e maio deste ano. Em Joinville, com 577 mil habitantes, de acordo com dados da Segurança Pública de Santa Catarina, foram 34 casos no mesmo período.

De acordo com dados do último Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), no entanto, em 2017 a cidade no norte catarinense registrou uma taxa de 22,4 assassinatos por 100 mil habitantes — mais alta, por exemplo, que a de São Paulo (13,2), abaixo, contudo, da carioca (35,6).

Independentemente desses índices, a advogada Aline Caldeira Lopes, especialista em Direito da Família e integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, opina que houve preconceito na sentença.

— Esse fundamento da decisão de que o Rio é uma sementeira do crime, além de inusitado, é muito grave. Jamais poderia ser argumento para retirar a guarda da mãe. É preocupante, porque grande parte da população do Rio mora em favelas— diz ela. — Há provas nos autos, como estudo social e psicológico, que atestam que a criança tem um perfeito acolhimento emocional — acrescenta.

O sociólogo Michel Misse, da UFRJ e especialista em violência urbana, também levanta questionamentos sobre as alegações do juiz:

— Se viver ou não em áreas perigosas se tornar um critério para concessão de guarda, ninguém mais vai poder morar no Rio, que hoje tem diversas áreas controladas por tráfico, milícia e outros grupos do crime organizado. Uma decisão como essa privilegia quem tem uma situação econômica mais favorável. Mas todos são iguais perante a lei.

Além do argumento geográfico, na sentença deste mês o juiz entendeu que, por se tratar de uma criança do sexo masculino, o menino deveria ficar com o pai.

“ X. tem agora oito anos de idade. Necessita de exemplo paterno, por ser criança do sexo masculino. Isto é tanto mais verdadeiro, se levarmos em conta a gravidade da constatação de que o menino sequer se lembra do pai. Já ficou X. tempo demais com a mãe”, concluiu o juiz. Em seguida, ele determinou que a mãe deveria entregar o filho ao pai no prazo de dez dias do trânsito julgado da sentença, sob pena de multa de R$ 7 mil. Também a condenou ao pagamento dos custos processuais e de R$ 3 mil de honorários dos advogados do pai.

À espera de um recurso

Por parte da defesa de Rosilaine, o advogado Leandro Cardone, que assumiu o caso, recorreu da sentença e buscou apoio da Comissão de Direitos Humanos e Assistência Jurídica da OAB-RJ, que analisa se houve algum tipo de violação no caso.

— Ela (Rosilaine) tem plena capacidade de cuidar da criança, é uma mãe amorosa, e ele tem uma relação de afeto muito grande com o irmão e os parentes maternos. Além disso, quantas mães no Rio de Janeiro moram em comunidades? Por esta lógica, todas estariam ameaçadas — comentou Cardone.

Na primeira sentença, o magistrado tinha considerado ainda as condições financeiras dos pais da criança. “O varão é suboficial da Marinha e ganha bem. Sua renda é constante, ao contrário do que se dá com a diarista (ocupação de Rosilaine na época )”, escreveu.

Procurado, por meio da assessoria de imprensa do Tribunal de Justiça do Rio, o juiz não se manifestou. Já o advogado Ricardo Afonso Baptista, que representa o pai do garoto, defendeu os argumentos do magistrado:

— Sou carioca, mas moro há 36 anos em Joinville. Esta cidade é a Europa do Brasil. No caso em questão, além da insegurança, o pai não pode sequer visitar o filho na comunidade, porque já está ameaçado de morte pela criminalidade local. Além disso, também baseamos o pedido no fato de que a criança precisa do afeto paterno.

Os pais do menino se conheceram em São Pedro da Aldeia, no início de 2010. Em um mês, o militar entregou sua casa na Região dos Lagos para morar com Rosilaine, em Manguinhos. No mesmo ano, ela ficou grávida. Segundo Rosilaine, os problemas que precederam à separação ocorreram após o nascimento da criança.

— Ele gritava com meu filho mais velho. Bebia e ficava violento. A situação ficou insustentável, até o dia que me ameaçou com uma faca. Registrei queixa e ganhei uma medida protetiva. A separação foi em abril de 2014. Em julho, entrei com o processo e ganhei a guarda provisória, até sermos surpreendidos com essa reviravolta — afirma ela.

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