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Dia Mundial da Alimentação: insegurança alimentar e como ela avança no Brasil

Fome é uma sensação “soberana do ponto de vista biológico”, conhecida por todos desde o primeiro momento de vida. A insegurança alimentar, por outro lado, é uma expressão mais social que biológica; “fala sobre as pessoas terem assegurado o alimento que chega até elas”.

A explicação é da doutora em Ciências da Saúde Denise Oliveira, coordenadora do Grupo de Pesquisa em Alimentação, Saúde e Cultura, da Fiocruz Brasília.

Difundida na década de 1970 pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e Agricultura (FAO), quase três décadas após a escolha do dia 16 de outubro como Dia Mundial da Alimentação, a segurança alimentar e nutricional é uma pauta urgente no Brasil.

Especialmente no momento em que 55,2% da população não necessariamente come três refeições ao dia, segundo o relatório mais recente da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PenSSAN), formada por pesquisadores de todo o país. O mesmo levantamento indica mais de 19 milhões de brasileiros em privação extrema de alimentos.

A angústia de encontrar a geladeira vazia fez, durante meses, parte do cotidiano auxiliar de produção Jôhanna Andrade, de 23 anos. “Já saí de casa sem fazer refeição nenhuma. Já senti fome e não tinha refeição. Isso não tem explicação. O alimento na geladeira é o mínimo para a dignidade do ser humano”, diz Jôhanna.

Há oito meses desempregada, a pernambucana de 23 anos recorreu ao LinkedIn, rede social voltada para contatos profissionais, para falar sobre as dificuldades que, sem renda fixa, enfrenta para garantir o básico de abastecimento. “É muito ruim dormir sem saber o que vai comer amanhã porque realmente não tem o que comer. É muito ruim saber que vai chegar a hora de almoçar e eu não ter almoço pra comer também”, publicou.

O texto, que pede indicações de emprego, lista as áreas nas quais a auxiliar se sente apta a trabalhar: auxílio de produção, refrigeração e operação de máquinas. “Eu não chamo nem de ideia o que me levou a publicar sobre isso. Foi falta de opção, a única saída que eu vi”, conta.

“Pandemia não é a única responsável”

Embora a pandemia tenha contribuído para o agravamento da insegurança alimentar no Brasil — principalmente pelo aumento de desempregados, que já representam 14% da população –, a pesquisadora Denise Oliveira destaca que a crise sanitária antecipou um cenário estruturado há mais de uma década.

“Há estudos em diferentes áreas que mostram que esse cenário já vinha se mostrando com as crises mundiais, desde 2004, 2008. A pandemia foi uma alegoria da desigualdade, ela se instala dentro de uma situação que já vinha se deteriorando”, diz.

De acordo com Denise, um dos maiores desafios para a garantia de uma alimentação adequada e suficiente aos brasileiros é a própria dinâmica da produção. “Os sistemas alimentares hoje são predatórios. Destroem muitas variedades de alimentos pelas culturas que geram commodities: gado, pasto, soja, laranja…”

Ela explica que esse contexto gera um problema muito mais profundo do que há 40 anos. “Antes, o problema era acesso, e a distribuição de renda melhoraria a situação. Hoje, além da desigualdade, nós também estamos perdendo fontes importantes de alimento porque não interessa produzir o que não gere dinheiro”, acrescenta a pesquisadora.

Para Rafael Zavala, mestre em agricultura sustentável pela Universidade de Londres e representante da FAO no Brasil, existem três grandes desafios que o país precisa enfrentar pela garantia da segurança alimentar. “Mudar a forma como produzimos os alimentos, como consumimos e como descartamos, já que as perdas e desperdícios são um problema que também precisa de atenção”. Em resumo, segundo ele, “a chave está nas práticas agrícolas e pecuárias sustentáveis”.

Alimentos em quantidade e qualidade

Além do acesso às refeições, outro ponto é fundamental para a garantia do direito básico à alimentação, incluso em 2010 na Legislação Federal, é a qualidade nutricional dos alimentos.

De acordo com o estudo “Efeitos da pandemia na alimentação e na situação da segurança alimentar no Brasil”, realizado pela Universidade Livre de Berlim, na Alemanha, em parceria com a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidade de Brasília, 44% dos entrevistados reduziram o consumo de carnes e 41% diminuíram o consumo de frutas durante o último trimestre de 2020.

O resultado da pesquisa torna-se ainda mais preocupante quando combinado ao levantamento realizado pelo Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), que aponta o aumento do consumo de ultraprocessados entre os brasileiros de 45 a 55 anos de 9% para 16% entre 2019 e 2020.

Elaborado pelo Ministério da Saúde e válido desde 2014, o Guia Alimentar Para a População Brasileira recomenda, como “regra de ouro” para a alimentação saudável, a preferência pelos alimentos in natura ou minimamente processados em detrimento dos chamados ultraprocessados – categoria em que estão inclusos os industrializados como bolachas, refrigerantes e macarrão instantâneo.

“Brasil sabe o que fazer”

Apesar do cenário preocupante, especialistas em nutrição e abastecimento concordam que existem saídas viáveis para contornar a crise no Brasil. Denise Oliveira destaca, inclusive, que a solução “não é uma resposta difícil”.

“O Brasil foi líder em experiências como o Fome Zero e o Bolsa Família, que foram usadas em países europeus. Existem leis e políticas para a garantia da segurança alimentar. A gente não precisa inventar nada. Já temos a política nacional de alimentação e nutrição, temos um programa de alimentação escolar… o que falta é a governança implementar isso. Nós sabemos para onde ir”, pontua.

Além das políticas públicas, Rafael Zavala também reforça que existem ações individuais que podem fazer diferença, como a atenção ao consumo sustentável. “A forma como escolhemos, preparamos, cozinhamos, armazenamos e eliminamos os alimentos é parte ativa do funcionamento de um sistema agroalimentar. Todos somos consumidores, e precisamos mudar os velhos padrões”, diz.

Ações do governo federal

Procurado pela CNN, o Ministério da Cidadania informou, em nota, que “tem trabalhado sistematicamente para fortalecer os programas sociais e estabelecer uma rede de proteção para a população em situação de vulnerabilidade no país”.

O texto diz ainda que “neste ano, somente por meio do Programa Bolsa Família (PBF), do Benefício de Prestação Continuada (BPC) e do Auxílio Emergencial, a pasta já investiu mais de R$ 102,02 bilhões”.

A pasta informa que, desde abril de 2020, o número de famílias atendidas pelo Bolsa Família se mantém acima dos 14 milhões, “a maior média da história” e que o novo programa social do governo, o Auxílio Brasil, “estabelece critérios que vão fortalecer a rede de proteção social e criar oportunidades de emancipação para a população em situação de vulnerabilidade”.

A nota destaca ainda que o Programa Alimenta Brasil, que substitui o Programa de Aquisição de Alimentos (PAA), garante “transparência e visibilidade às compras públicas da agricultura familiar”, “promovendo a inclusão econômica e social e o acesso à alimentação para pessoas em situação de insegurança alimentar e nutricional”.

O Ministério da Cidadania também estruturou, segundo a nota, a Iniciativa Brasil Fraterno, “que incorporou todas as ações voltadas para aquisição e distribuição de cestas de alimentos a quem mais precisa”. E reconstituiu a Câmara Interministerial de Segurança Alimentar e Nutricional, componente do Sistema Nacional de Segurança Alimentar e Nutricional. “Nove ministros de Estado com atuação intrínseca à segurança alimentar e nutricional integram o colegiado, que tem por objetivo promover a integração da administração pública, viabilizando a intersetorialidade das políticas sociais relacionadas ao tema, entre as quais as iniciativas de combate às perdas e ao desperdício de alimentos”, diz a nota.

A pasta também afirmou que trabalha na proposta de modernização dos Bancos de Alimentos, públicos e privados. “A ideia é simplificar os processos e promover a mobilização de mais doações por meio desses equipamentos que são estratégicos no combate à perda e ao desperdício, não só pela eficiência na distribuição de alimentos doados, mas pela capacidade de mobilizar essas doações que, em muitos casos, seriam desperdiçadas.”

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