A partir do início de dezembro a saúde pública do Rio Grande do Norte entra em uma nova fase. Para cumprir uma decisão que remonta a processos judiciais do fim dos anos 1990, a Secretaria de Estado da Saúde Pública e o Ministério Público firmaram um acordo para, até dia 15 próximo, fazer a regulação da porta de entrada do Hospital Monsenhor Walfredo Gurgel.
Em suma, o plano consiste em regular o acesso ao hospital para pacientes que já tenham passado por outros serviços de saúde e sejam referenciados para o Walfredo Gurgel pela gravidade e tipo de atendimento que seja do perfil da unidade, desafogando o hospital de casos leves, que historicamente absorveu e absorve, e a consequente superlotação dos corredores. A medida, no entanto, não barra o atendimento de urgência que seja conduzido pelo SAMU para o local, mantendo o perfil de hospital para atendimento de traumas de alta complexidade.
O documento judicial que norteia a medida pontua que entre janeiro e julho deste ano o hospital realizou 35.351 atendimentos – média de 5.050 por mês -, dos quais 18.459 foram avaliados como de baixo risco – 52% dos atendimentos.
Os casos que eventualmente sigam chegando ao hospital deverão ser acolhidos e encaminhados para os locais recomendados, como Unidades de Pronto Atendimento, postos de saúde ou outros. A medida já é consolidada em unidades públicas como, por exemplo, nos hospitais Giselda Trigueiro, na área de infectologia, e Maria Alice Fernandes, no atendimento infantil. Outra unidade que também funciona na capital como porta referenciada é o Hospital Municipal de Natal.
Principal unidade de saúde potiguar, o Walfredo, como é popularmente tratado, consolidou-se ao longo dos anos por ter uma porta de atendimento de alta resposta que recebe todos os tipos de casos. No entanto, de acordo com o desenho de rede, o hospital inaugurado no início da década de 1970 é formatado para atender urgências e traumas de alta complexidade – acidentes de trânsito, ferimentos por arma de fogo, traumas ortopédicos graves -, além de acidentes vasculares.
“Esse é um processo no qual estamos trabalhando há muito tempo, em conjunto com o Ministério Público e com um diálogo amplo e transparente com todos os atores, principalmente os municípios. Acima de tudo isso, está o desejo de entregar para a população potiguar o melhor atendimento possível. O Walfredo não vai deixar de atender o povo, apenas a situação irá mudar com o objetivo de fortalecer o SUS”, explica a secretária-adjunta de Saúde Pública, Lyane Ramalho.
Secretária-adjunta de Saúde Pública, Lyane Ramalho
O termo assinado no fim dessa semana passada pelo secretário de Estado Cipriano Maia, o procurador-geral do Estado Luiz Antônio Marinho e a promotora de justiça Iara Pinheiro, responsável pela promotoria de defesa da saúde pública.
O documento ressalta que o primeiro movimento em direção de equacionar a superlotação do hospital foi em 1999, com uma ação do MP que condenou o Estado a adotar “providências imediatas para que os pacientes internados nos corredores do Hospital Walfredo Gurgel” recebessem os devidos cuidados em locais apropriados.
O debate foi retomado em 2014, com a edição de uma série de normas de fluxo da saúde que envolvia a regulação de porta em diversos hospitais, e reforçado em 2017, com uma nova decisão judicial em processo que corre na 2° Vara da Fazenda Pública de Natal, requisitando novamente medidas para coibir o acúmulo de pacientes nos corredores, listando uma série de medidas, dentre elas a regulação da porta. Naquele ano, ainda ocorreu uma tentativa frustrada de regulação da porta.
“Todo esse histórico aponta que essa questão não é simples de se resolver. Estamos conduzindo um esforço grande enquanto gestão para que isso possa ser consolidado e a população do Rio Grande do Norte tenha no Walfredo Gurgel um serviço de saúde com um poder ainda maior de resolutividade dos casos. Contamos com o entendimento das pessoas e a cooperação dos municípios na aplicação dessa melhoria”, conclui Lyane Ramalho.
CONTRARREFERÊNCIA
Como parte do processo para mudança do perfil de atendimento do Hospital Walfredo Gurgel, a Sesap publicou na edição de 13 de novembro do Diário Oficial do Estado a portaria n° 3189.
O documento trata do chamado de fluxo de contrarreferência dos pacientes. A medida regulamenta o processo de encaminhamento das pessoas que “necessitam voltar às suas unidades de origem hospitalar de modo a continuar seu tratamento medicamentoso ou aguardar por cirurgia eletiva e procedimentos, ou mesmo ser encaminhado para Serviço de Atendimento Domiciliar (SAD) e ficar aos cuidados das equipes de saúde dos municípios”.
A portaria dá toda orientação para que as unidades de saúde, em especial as de alta complexidade como o Walfredo, tenham as condições para avaliar os pacientes de acordo com suas condições clínicas e possam dar o devido encaminhamento a outras unidades, fazendo o que as equipes chamam de “giro de leito” e deixando disponível os locais de internação para casos graves.
Desejo antigo dos servidores
As periódicas superlotações que ocorrem no Walfredo Gurgel são sempre acompanhadas pela sociedade potiguar há muitos anos. As cenas das macas nos corredores e das ambulâncias na porta do Pronto Socorro Clóvis Sarinho são vistas há anos.
Para quem acompanha por dentro o cenário é ainda mais preocupante. Nos últimos tempos, os atendimentos na unidade só crescem, chegando a picos de 220 por dia, quando em tempos atrás esse número mal chega a 140. Boa parte dessas pessoas apontam dos mais diversos municípios do interior, nas chamadas “ambulâncias brancas”, que chegam a ser 50 veículos na porta do hospital todo dia. Tudo para ser destinado, quando necessário, para uma das seis salas de cirurgia disponíveis no prédio.
“Colocam essas pessoas nas ambulâncias e encaminha para a porta do Walfredo, sem nós sabermos de nada. Só descobrimos quando chega aqui. Muitas vezes, infelizmente, só para constatar o óbito. A nossa expectativa é que finalmente com esse processo de regulação andando a realidade mude e a população compreenda”, relata Maria de Fátima Pinheiro, diretora do Walfredo Gurgel.
A diretora reforça que o processo de regulação é um desejo antigo dos servidores, pois vai diminuir a pressão em cima de toda a equipe. “A porta do Walfredo é um problema histórico. Somos a unidade mais complexa da rede, a que dá mais resposta, por isso tem que ter uma porta regulada. É complicado ter que receber baixa complexidade. Precisamos organizar para ter uma assistência melhor. Sendo avisados do paciente que chega, podemos preparar a equipe ideal para atender em tempo hábil e com condições. Isso é o que os funcionários desejam há muito tempo”, relata ela.
Com a mudança planejada para ocorrer até 15 de dezembro, na ponta, a porta regulada servirá, explica Pinheiro, para que um médico deixe de ficar dividido ao mesmo tempo entre casos de baixa complexidade, como fraturas leves, por exemplo, e de alta, como politraumas ou um AVC. “Natal pode enfim passar a ter um hospital de trauma, como é padrão em outras regiões semelhantes no país”, resume a gestora.
MP classifica decisão da Sesap como “momento histórico”
Há anos acompanhando a situação do Walfredo Gurgel, a promotora de justiça Iara Pinheiro classifica a decisão da Sesap, em parceria com o Ministério Público, de regular a porta do hospital como “um momento histórico”.
“Espero que, enfim, possamos ter um Walfredo Gurgel atendendo dentro do perfil para o qual foi desenhado. Será uma melhoria de atendimento para todos os 3 milhões de potiguares. Falo isso pois em toda a rede de saúde, pública ou privada, não há unidade com expertise ou capacidade iguais. Então, esse processo de regulação é essencial”, explica Pinheiro.
A promotora destaca que essa movimentação só sai do papel, mesmo com decisões judiciais que correm há anos e mesmo décadas, por uma decisão de gestão, diferente de outras medidas judiciais que envolvem a saúde e pontuam na parte financeira para leitos de UTI ou medicamentos. “O acordo só saiu agora porque a gestão da Sesap decidiu fazer. Essa é uma medida que depende da vontade de fazer, que só se encontrou agora”, complementa a titular da 47° promotoria.
Outro fator importante destacado por ela é a questão da economicidade gerada com a regulação da porta. A promotora explica que a estrutura do Walfredo Gurgel tem um custo alto, por seu perfil de complexidade originalmente pensado e moldado, para ser ter um percentual elevado de casos simples. “É caro e contraproducente manter uma estrutura, funcionando 24h por dia, com diversos profissionais qualificados, dois tomógrafos e tudo o mais, para atender casos leves. Até por esse ponto é uma medida necessária regular a porta”, ressalta.