Francisco, o papa “verde”, leva Igreja ao centro dos debates sobre clima na COP26

Fonte: CNN Brasil

0
533

No urgente debate climático e ambiental, o papa Francisco gosta de dar as cartas. E sabe muito bem fazer isso.

Não à toa no último dia 4, data de celebração de São Francisco de Assis, o pontífice organizou no Vaticano um encontro que foi praticamente um esquenta da COP26, a Conferência Mundial do Clima que acontece em Glasgow, na Escócia.

Com direito até a foto pronta para viralizar — no caso, o papa regando uma plantinha levada ao salão principal do encontro — e muitas frases de efeito.

Para vaticanistas é um consenso: a pauta verde deve ser a principal marca do atual papado. Francisco disse que a COP26 precisa “oferecer, urgentemente, repostas eficazes para a crise ecológica sem precedentes e para a crise de valores em que vivemos”. E só isso permitirá uma “esperança concreta às futuras gerações”.

Não é a primeira vez que o sumo pontífice busca pautar as discussões da cúpula climática. Em 2015, o Acordo de Paris foi assinado sob forte influência da Laudato Si’, que havia sido publicada naquele ano e entrou para a história como a primeira encíclica da história da Igreja a abordar o meio ambiente.

Desta vez, Francisco chegou a cogitar ir a Glasgow — essa ideia vinha sendo ventilada desde o início do ano. Contudo, por razões não divulgadas, o Vaticano informou no início de outubro que a participação oficial católica será restrita a uma delegação chefiada pelo secretário de Estado, o cardeal italiano Pietro Parolin.

Mas a ideia é influenciar nas discussões, formal ou informalmente. “Seja como instituição, como igreja, seja como Estado, a Santa Sé exerce um soft power nas relações internacionais. Não tem poder de coerção, mas tem poder de influência. E [no aspecto ambiental] a Igreja está muito alinhada à ciência”, avalia o vaticanista Filipe Domingues, doutor pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e vice-diretor do Lay Centre em Roma.

Guinada ecológica

“Francisco está antenado com aquilo que é possível nos nossos dias. Ele é um papa do início do século 21, e sabe que questões ambientais são essenciais”, comenta o historiador, filósofo e teólogo Gerson Leite de Moraes, professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Para ele, a seara ambiental foi a trincheira onde o papa escolheu “travar as batalhas” mais importantes de seu papado.

A guinada verde de Francisco não ocorreu de forma abrupta. Analistas recordam que o tema já havia resvalado profundamente no religioso anos antes de se tornar papa. O então cardeal Jorge Mario Bergoglio, na condição de arcebispo de Buenos Aires, foi responsável pela comissão de redação da Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano e do Caribe (Celam) realizada em Aparecida em 2007. Ali teria ocorrido sua “conversão ecológica”.

“O documento produzido por esse encontro, que mais à frente se tornaria a bússola do pontificado de Francisco, tratava com preocupação a questão da Amazônia. Ao assumir a Igreja, Bergoglio foi maturando esse pensamento ecológico, que havia sido plasmado lá atrás, e percebeu que o papado em si havia focado pouco nesse tema. Ele assumiu para si essa responsabilidade”, analisa a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do catolicismo na Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma.

Menos de seis anos mais tarde veio o ‘habemus papam’. Em 13 de março de 2013, o argentino se apresentou ao mundo assumindo a identidade de Francisco. Um cartão de visitas de peso. “Ele escolheu esse nome inspirado em São Francisco de Assis, e temos de analisá-lo a partir daí como um papa preocupado com a questão ambiental”, pontua Domingues. “São Francisco falava da criação, interagia com a criação, com a natureza, com aquilo que estava a sua volta.”

Um pontificado verde

A questão ambiental passou a permear discursos papais e estar presente também em ações pastorais da Igreja. Porque no entendimento de Francisco, a coisa funciona assim: puxar as orelhas de quem está no poder, criticando condutas vistas como insustentáveis vindas de quem tem o dinheiro, e cobrar, nas comunidades locais, mudanças de hábitos das pessoas comuns.

É um percurso que gera atritos, claro. Domingues lembra que, principalmente por causa da postura do ex-presidente Donald Trump, católicos conservadores nos Estados Unidos passaram a criticar abertamente o papa.

“Uma parte da Igreja ali, muito alinhada às bases do Trump, se tornou resistente a Francisco, sobretudo por conta das críticas que ele faz sobre questões ambientais. Quando o papa fala que é preciso promover energias renováveis, ele mexe com gente muito poderosa dos Estados Unidos”, afirma o vaticanista.

Em 2015, Francisco publicou a encíclica Laudato Si’, vista como o documento fundamental de seu pontificado. Ele já nasceu com uma indelével marca histórica, pelo ineditismo do tema. A carta é permeada de informações baseadas em estudos científicos. Francisco consultou-se não só com teólogos, mas também com ambientalistas e climatologistas.

“Foi um marco forte porque o papa trouxe a ecologia integral e, ao mesmo tempo, a conversão ecológica como uma proposta, um pedido, um apelo a toda a Igreja”, diz Marcelo Toyansk Guimarães, integrante da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB, seção São Paulo).

De lá para cá, foram muitos encontros com figuras ligadas à luta ambiental. Em abril de 2019, por exemplo, esteve com a ativista sueca Greta Thunberg na Praça São. Pedro. “Vá em frente e que Deus te abençoe”, disse à jovem militante.

Em outubro do mesmo ano, o Vaticano abrigou o Sínodo dos Bispos Sobre a Amazônia. Naquele mês, autoridades eclesiais de todo o mundo discutiram questões ambientais, tendo o bioma brasileiro no centro da mesa.

Pandemia e atualidade

De lá para cá, a batina verde de Francisco parecia meio em segundo plano. A explicação, contudo, não está numa mudança de valores, mas sim na pandemia. “As coisas se misturaram. A Covid-19 colocou em stand by muita coisa, possibilitando-nos um tempo maior para reflexão sobre as coisas que fizemos, as coisas que estamos fazendo em relação ao mundo”, comenta Gerson Moraes.

Questões como pobreza e a importância das vacinas passaram a aparecer mais nas declarações do papa do que o meio ambiente. Uma necessidade dos tempos. Mas desde o início deste ano, quando Glasgow começou a aparecer no radar, Francisco voltou a insistir no tema ecológico.

Domingues avalia que o papado de Francisco está numa fase de consolidação. Todas as ideias novas que o argentino queria apresentar para a Igreja já estão postas. Ele vive um momento quase didático: repete os mesmos pontos para sedimentar seus princípios do magistério da Igreja. É uma maneira de dar solidez ao seu papado, tornando fundamental que seus sucessores partam desses pontos como verdades já firmes.

Mirticeli Medeiros atenta para o papel do Vaticano junto aos indivíduos de todas as partes do planeta. “No pontificado de Francisco, essa mensagem de conscientização ganha outra força, outra proporção, porque ele é um líder bastante ouvido e consegue exercer influência junto à comunidade internacional”, ressalta. “O Vaticano e sua postura soft power, a depender de quem está à frente, pode fazer a diferença. E Francisco tem feito.”

“Os apelos do papa têm ultrapassado os muros da Igreja”, acrescenta a vaticanista. A delegação que representa Francisco tem o que falar na COP.

E há uma preocupação com a lição de casa: a Igreja tem cobrado de paróquias e instituições que adotem princípios sustentáveis e a própria Santa Sé estuda ajustes para reduzir sua pegada de carbono. “A pedido do pontífice, iniciativas ‘dentro de casa’ estão sendo feitas”, afirma Mirticeli Medeiros.

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor, digite seu comentário!
Por favor entre com seu nome aqui